terça-feira, 15 de novembro de 2011

André Carreira | Espaço urbano, medo e os labirintos dos mitos urbanos...

Espaço urbano, medo e os labirintos dos mitos urbanos... um rápido pensamento a partir de Giulio Carlo Argan

Escrito por André Carreira para o grupo de estudos A Cidade como Dramaturgia
(isto não é um artigo, é apenas uma provocação para as reflexões teóricas do grupo)

Como pensar a produção do artista, performer, ator no espaço da cidade se partimos da ideia de um espaço temido? Giulio Carlo Argan relaciona a cidade com o conceito de civilização (termos com a mesma origem). A cidade é um lugar que foi construído como lugar seguro oposto à natureza, que era a zona temida. Antes do desenvolvimento do capitalismo foi o lugar fechado e seguro. Posteriormente, a cidade se transformou em lugar do medo. Vivemos percebendo os perigos que nos cercam. Paradoxalmente, sentimos que este ambiente nos alberga na nossa fantasia de um mundo moderno. A tecnologia e todo o aparato urbano (seus hospitais, delegacias, escolas, etc.) nos garantiriam a segurança que desejamos. Talvez por isso estamos na cidade construindo um imaginário que vislumbra uma contemporaneidade que é uma promessa de felicidade (?).
Para Argan poderia se dizer que “e a cidade não houvesse se desenvolvido como a megalópole industrial contemporânea as filosofias da angústia existencial e da alienação teriam bem pouco sentido.” Consequentemente, a cidade seria a nossa doença. Seríamos sintomas da cidade. Podemos ser ao mesmo tempo construtores da cidade da qual somos decorrência sintomática? Ou exatamente isso que nos coloca no cerce da lógica urbana? Assumir como tecido da cidade os diferentes planos e tensões da angústia e as práticas da alienação, nos conduziria a um diálogo no qual por afirmação ou contradição, reposiciona o sujeito e seus desejos frente ao ambiente. No lado oposto temos a instituição e seus desígnios técno organizacionais.
Nesta cidade a realidade não seria mais dada em escala humana (ela não poderia ser concebida, pensada, compreendida pelo homem, só poderia ser sofrida). Ela, a realidade, existiria então, em dimensões infinitamente grandes e infinitamente pequenas, iria do superior ao inferior.
Outro conceito que Argan propõe, claramente em articulação com os conceitos do urbanista norte americano Kevin Lynch é o de ambiente urbano. Para o autor italiano este ambiente urbano, seria diferente daquilo que chamamos de ‘espaço urbano’. Portanto, “o espaço é projetável, é produto de projetos, enquanto o ambiente pode ser condicionado, mas não estruturado ou projetado”.
Argan relaciona essa ideia com a perspectiva proposta por Lynch quem delimitou os significados psicológicos do ambiente urbano. (215) Essa percepção outorgou ao usuário um papel importante na compreensão dos processo de construção dos sentidos, isto é, da imagem da cidade. Assim, os referentes (marcos, vias, bairros, etc) seriam reconhecidos pelos usuários de modo a que conjugando tais elementos se articularia a imagem da cidade, chave para a edificação do ambiente urbano.
Mas, Argan não pensa o ambiente urbano de forma abstrata. Ele o relaciona de maneira direta com a sociedade de consumo, caracterizada fundamentalmente como opressiva e repressiva. Consequentemente, Argan define o ambiente como opressivo e afirma que nisso está nossa amarga, e alienante experiência cotidiana.
Indo a um ponto mais extremo Argan diz que “a cidade pode ser considerada em si mesma um bem de consumo, isto é um sistema global de informações destinado a determinar o máximo de consumo de informações” (217). Este sistema de informações não seria responsável apenas pela difusão de dados e
informações, mas também pela indução de conhecimentos e modelos culturais, normatizando a vida no urbano, construindo (opressivamente) os padrões dos comportamentos.
A essa tendência do sistema Argan opõe como alternativa a possibilidade de “colocar *esse sujeito+ em condições de não consumir as coisas que gostariam de fazê-lo consumir ou de consumi-las de maneira diferente da que gostariam que as consumisse, de consumi-las fora daquele tipo de consumo imediato, indiscriminado e total que é prescrito como sistema de poder, pela sociedade de consumo. Para Argan se existe alguma alternativa aos processos opressivos e repressivos do consumo como sistema cultural, isso se daria pela restituição ou conservação de certa liberdade de escolha e de decisão. Essa liberdade, ainda que parcial e operacional, poderia criar “disponibilidade para engajamentos decisivos, inclusive no campo político”. Quando restituímos ao indivíduo a capacidade de interpretar e utilizar o ambiente urbano de uma maneira diferente das prescrições implícitas no projeto institucional estaríamos estimulando ações criativas do ambiente. Assim, surgiriam possibilidade de não se assimilar, mas de se reagir ao ambiente (216).
Refletindo sobre a arte na cidade, Argan comenta que temos principalmente uma “Arte-não produto”. De fato “hoje temos a arte como não-produto, o que [seria] evidentemente, a uma [forma drástica da arte contemporânea e] das contestações do sistema, porque em um sistema em que tudo se compra e se consome, o que reivindica para si o privilégio de não ser nem vendável, nem comprável é evidentemente algo que se declara irredutível ao sistema.” (221) Indo além, Argan diz que esta arte “não é para vender, nem para comprar, (...) mas sim para consumir, aliás consumir logo, imediatamente. É proibido embrulhá-la e levá-la para casa... talvez nem seja algo para se consumir de imediato, porque já é dada como algo consumido, que já entrou em circulação em nosso organismo. Não podemos mais que deixá-la cumprir sua função orgânica no inconsciente coletivo, que ocupou o lugar do consciente individual no homem da massa” (221).
É interessante relacionar isso com o mapa do site specific que propõe Miown Kiwon no seu livro XXX, pois a autora aponta estratégias que museus e curadorias descobriram para reintroduzir a “arte não produto” nos fluxos do mercado de arte. Podemos dizer que o olhar de Argan poderia ser discutido pois, em princípio ele perceberia uma capacidade intacta nesta arte frente à lógica do sistema de informações. No entanto, apesar disso o autor diz, ainda em relação com a vocação da arte não-produto, que esta arte implicaria que “o próprio momento da percepção [dela] torna-se supérfluo e dado como já acontecido”, pois o eixo dessa produção seria sua “redução final a noticia”.
Argan destaca que esta arte “nem sequer pede ser percebida, evita o trauma da percepção e, justamente porque é e quer ser apenas notícia, contenta-se com ser notada, não dando nenhuma importância ao trauma da informação inesperada” Esta posição extrema e polêmica sustenta seu ponto de vista segundo o qual estamos, no limiar de uma estética do acontecimento. Mas o autor diz que “nada de estranho *há nisso+, pois que já havíamos chegado aos antípodas da forma. “ (222) Um elemento para a reflexão seria em pensar em que medida isso nos coloca frente uma crítica a esta arte que abre mão de toda estética e, inevitavelmente, cai no terreno da notícia. O elemento do bizarro, do inusitado é um elemento sedutor para as composições de uma cena no urbano, mas em que medida continua nos importando a possibilidade de que exista um elemento ficcional como ponto de sustentação da relação com o outro, isto é, com aquele que caminha pelas ruas?
Para Argan é interessante distinguir estes acontecimentos da vida cotidiana que segue seu rumo. Ao perguntar-se: “qual acontecimento constitui essa estética?”, o autor identifica a arte na cidade como “um acontecimento artificial, [um] acontecimento urbano que por onde quer que se produza, se
produzirá sempre na cidade”. Assim, ele está fazendo uma diferenciação com os outros acontecimentos. Por isso, para Argan “há apenas uma alternativa: ou será um acontecimento qualquer que não se poderá distinguir dos outros, infinitos, que ocorrem na cidade e que será imediatamente absolvido, assimilado e esquecido no ambiente opressivo e repressivo da cidade moderna, ou será um acontecimento diferente, um acontecimento interpretável.”
Essa característica (“ser interpretável”) faz com que “todo acontecimento que não se preste apenas a ser recebido passivamente, isto é, qualquer notícia que não seja aceita estupidamente, [tal] como é transmitida pelas estações de rádios ou canais de televisão, encerra em si a virtualidade, a candidatura a ser acontecimento histórico”. (222) Evidentemente, isso nos desafiaria a descobrir como construir uma arte na cidade que não esteja impulsionada pela expectativa da notícia, que não tenha a vocação de se fazer unicamente como um fato inusitado, que como as notícias do dia a dia, só importam no momento da sua enunciação, já órfãos de um futuro, de alguma reverberação. Para Argan, ao estar imune à interpretação, isto é, a uma apropriação como acontecimento artístico, a obra perderia sua qualidade de arte. Com certeza essa posição é discutível, por isso merece uma inflexão que permita pensar que o que o autor está nos colocando é uma reflexão sobre o lugar da arte nos tempos que correm.
Concluindo seu pensamento sobre arte e cidade, Argan afirma que os artistas que dialogam com a cidade deveriam pensar na perspectiva de um “urbanismo geral” (224). Seu ponto de vista nasce da certeza que a arquitetura não projeta mais, e se esta não que cria hipóteses para desdobramentos ambientais, os criadores de uma arte na cidade estariam interferindo diretamente na conformação da noção de cidade. Finalmente, podemos ver como Argan abre um espaço para uma arte que teria o papel central nas transformações da cidade.

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